quinta-feira, 27 de março de 2008

FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do direito civil.

FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do direito civil: à luz do novo Código Civil Brasileiro. 2.ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 141-155.
Estrutura: Tríplice Vértice Fundante do Privado. Pilares de Base. Conceito, Moldura e Sistema.
Resumo:

Tríplice Vértice Fundante do Privado

A separação une. Classificações, dicotomias e divisões organizam o sistema, e cumprem relevante função veiculada através da linguagem.

Na ótica do modelo clássico, há uma dicotomia inicial que separa o conjunto de regras de Direito Privado e de Direito Público. Esta dicotomia está assentada em alguns referenciais, como, por exemplo, a qualidade do sujeito.

Tratando-se de particulares as relações seriam de Direito Privado e, se num dos pólos dessa relação figurassem pessoas como o Estado ou o Município, apresentar-se-ia relação jurídica de Direito Público. Há outro referencial também discutível ao lado da qualidade do sujeito. É a natureza da relação jurídica, segundo a qual, se foi o vínculo marcado pela subordinação, isto é, por uma supremacia juridicamente legítima de uma parte sobre a outra, como no caso do fisco em relação ao contribuinte numa obrigação tributária, estaria inserido no Direito Público. No Direito Privado, relações são, em regra, marcadas pelo sentido de coordenação, ou seja, são pólos de uma relação jurídica que não estabelecem desde o início, na sua essência, compromisso de prioridade ou supremacia de um sobre o outro.

Referenciais precários, dicotomia que serve antes para explicar didaticamente a separação de regras como fenômeno jurídico e para marcar uma divisão. Dois segmentos de relações que procuram levantar fronteiras na organização do sistema do Direito Privado, assentado no contrato, patrimônio e família, elementos que compõem um tríplice vértice, a base fundante do privado.

Pilares de Base

O Direito Privado (mesmo à luz do novo CCB de 2002) se projeta para o âmbito dessas relações entre particulares, e se arma uma estrutura jurídica que se dispõe a organizar esses pilares e todas as suas projeções. O sistema se organiza a partir desses elementos, como se infere adiante.

Para a noção de contrato é necessário primeiro ter um conjunto de princípios e regras que compõem, à luz do conceito de relação jurídica, a teoria desse sistema, codificada sob o nome de parte geral. Esta visa exatamente tratar princípios e regras, como, por exemplo, sobre interpretação dos negócios jurídicos, e também diretivas articuladas para fazer com que o contrato válido funcione. Nelas, a noção de sujeito vem adequadamente explicitada para ingressar como uma estrutura que impulsiona a dinâmica do contrato.

O contrato desenvolve uma expressão de autonomia da pessoa no espaço de uma certa liberdade. Essa é a concepção que se propôs a superar o dogma da vontade na concretização de personalismo ético. A questão está no limite contundente dessa configuração jurídica, que se reconhece incompleta e imperfeita.

Os contratos pressupõem "vontades" e, por isso mesmo, pressupõem a existência de alguém que manifeste essa vontade; daí ser imprescindível a relação de sujeito: o sujeito em si mesmo não é suficiente, sendo necessário colocá-lo em relação com outro, donde surge a relação jurídica. Essa idéia vai vincular sobre o que recaem poderes e deveres, portanto, nesse sentido, emerge também a noção de objeto, que passa a ser, do mesmo modo que as demais, uma expressão dos pilares que compõem a base do Direito Privado.

Sujeito, obviamente, se refere à pessoa, noção não necessariamente a mesma que aquela incorporada pelo fenômeno jurídico . Reconhecidamente no modelo clássico, a nem toda pessoa é reconhecido esse status de sujeito de direito. A definição de sujeito é noção que impera em corte, a partir da realidade que projeta para o âmbito do sistema jurídico. Nesse sentido, nem tudo e nem todos ingressam no sistema.

Pessoa é um conceito elaborado a partir da associação com o sistema jurídico, ser a que se atribuem direitos e obrigações. Este é o pórtico conceitual, para ser pessoa perante o Direito, é preciso "ter" direitos e obrigações. Antes de captar o ser, apreende-se pessoa como criação modelada pela ordem jurídica. Fica, então, clara esta idéia de corte entre pessoa como realidade autônoma e anterior ao sistema jurídico.

Esses exemplos estão formulados de acordo com as fontes do direito romano, mas uma leitura contemporânea reconhece que, do ponto de vista teórico, não temos mais a morte civil como tal ordenamento jurídico. Por outro lado, basta recolher materiais da realidade contemporânea para apreender versão muito própria das distinções, que ainda permanecem. Isso parece ficar evidenciado na afirmação do professor Manuel Antonio Domingues Andrade, segundo o qual, como visto, todo o sujeito de direito é necessariamente pessoa em sentido jurídico embora à inversa não seja teoricamente exata. Numa nota de rodapé, dá exemplo de estado como qualidade jurídica, e anota que Ferrara escreveu: "São condições, os estados naturais ou civis das pessoas qu e influem sobre o gozo ou sobre o exercício dos direitos." Exernplifica a seguir com a idade, o sexo, a enfermidade, a posição na família, a condição de nacional ou de estrangeiro, a posição de membro de uma associação, a relação com o domicílio, a qualidade de comerciante" e concluiu: "esses estados ou qualidades caraterizam juridicamente o sujeito, dando-lhe uma noção e medida de direito e obrigações".

Nessa dimensão, arremata uma derradeira observação, ao tratar das vicissitudes das relações jurídicas em geral, o professor Emílio Betti: "O nascimento de um direito importa sempre a sua atribuição ao sujeito e, portanto, a sua aquisição, visto que qualquer direito é adquirido com base na valoração de uma ordem jurídica, e que nenhum direito é inato no sentido de poder preexistir a essa ordem jurídica". Esta afirmação é de uma gravidade transcendental, não imune a críticas. Se, de um lado, se reconhece uma certa virtude no sentido de que isso organiza formalmente o sistema e lhe confere uma certa dose de segurança no tráfego das relações jurídicas, por outro lado, a época contemporânea está marcada pela presença de certos fenômenos que não se contêm nessa ordem de idéias. E fica mais evidenciado do que nunca que o sentido formal que testemunha a noção de sujeito de direito, é um sentido rente à concepção dominante dos valores de uma dada sociedade.

No livro de Michel Miaille, uma afirmação resume: "Fica-se pois com a noção que a categoria jurídica de sujeito de direito não é uma categoria racional em si. Ela surge num momento relativamente preciso da história e desenvolve-se como uma das condições de hegemonia de um novo modo de produção." Liga-se o sujeito de direito a esse dado momento da história, em que houve uma certa inserção econômica, política e cultural. Não há uma categoria que tenha transitado durante todos os tempos, através dos séculos, como apta para exemplificar todos esses modelos.

Conceito, Moldura e Sistema

Ao se começar a estudar Direito Civil, explícita-se o significado etimológico da palavra "pessoa", base do conceito de sujeito. "Persona", originariamente máscara, explicada pelo professor Miguel Maria de Serpa Lopes: "A palavra pessoa, em Roma, servia para designar a máscara trágica que engrossava a voz do ator e também a máscara dos ancestrais que se apresentavam nos cortejos fúnebres". Esta é a origem: "Tomando o sentido jurídico é para as pessoas que o direito foi feito"; "persona" foi conceituada progressivamente como sendo ser humano capaz de direitos e obrigações.

Isso parece evidenciar que na exata medida em que se necessitava de um conceito para colocar no centro dessa moldura do sistema jurídico, esse conceito não foi um sentido material em si, da pessoa, e, sim, algo que era sobre o ser; depositada esta máscara que se colocava sobre a face, emergia algo externo ao próprio ser. Esse Direito não se compadece da noção material de pessoa. É a noção formal que reduz a de pessoa a um complexo de normas, ou centro de interesses.

Serpa Lopes explica essas diferenças entre conceito material e conceito formal da pessoa:

No conceito de pessoa, duas posições existem no campo doutrinário: ou se considera a tecedura meramente formal, isto é, aquele centro ao qual o ordenamento jurídico imputa atos ou fatos jurídicos capazes de levar a uma aquisição de direito ou uma assunção de obrigações. Esse é o conceito Kelseniano de pessoa, portanto, é o conceito formal ou, ao contrário, o conceito de pessoa exige no direito a própria materialidade mesma que é tal homem e por extensão, a pessoa por nascer.

Se a noção de pessoa surge a partir de um complexo de normas, duas conclusões emergem: primeira, só há pessoa a partir do ordenamento jurídico, logo, a pessoa não é um conceito anterior; segunda, todas as pessoas são, nessa medida, pessoas jurídicas porque, evidentemente, só é pessoa aquela definida enquanto tal pelo ordenamento jurídico.

Mesmo anotando-se a idéia da materialidade como fundante da concepção de pessoa, urge examinar como isso se projeta para o mundo do Direito, e, ainda mais, como se projeta num conceito de personalidade jurídica. Quando se diz que alguém pode ser titular de direitos e obrigações e que tem aquilo que se chama de aptidões genéricas para contrair obrigações, estamos diante de um fenômeno de personalidade jurídica.

A idéia da personalidade convive exatamente como dies a quo e dies ad quem da existência; convive com o sentido da vida e da morte, o princípio e a terminação da vida. O problema está em saber o começo e o fim da vida para o Direito. O Direito, a Biologia a Psicologia e tantas outras ciências, não têm os mesmos conceitos sobre a vida que começa ou sobre quando se dá o início da geração. Basta para o artigo 2° do novo Código Civil, nascimento com vida da pessoa para lhe atribuir o status de ser portador da personalidade jurídica. E é nessa exata medida que surge a questão de saber se o nascituro tem ou não tem personalidade jurídica, o que significa verificar se o nascituro é ou não é sujeito de direito. O ser que aí nasce, ao nascer para o sistema jurídico, é colhido por um embalo insular. Isto quer dizer que o natimorto não é e nunca foi sujeito de direito.

Se o nascituro não tem personalidade jurídica, não é sujeito, porém, os bens não vão para outro sujeito, nem para nenhum dos ascendentes vivos. Eles ficam num estado transitório, que é o mesmo que se passa com a herança jacente, ou seja, se falece alguém que não deixa herdeiros, até o momento de o Município recolher, nos termos do novo Código Civil, há um estado transitório, em que aquilo não pertence a ninguém. É claro que há uma curadoria, ou seja, há administração desse bem. A rigor, não há titular desse bem em estado transitório. É o mesmo que se passa quando determinado título de crédito ao portador tiver sido abandonado e quando for evidente o abandono. O abandono implica uma deixa, e com ela constitui ares derelicta ou a derilição, que é a saída do bem da sua esfera jurídica. Há certos estágios transitórios que implicam essa figura dos chamados direitos sem sujeito.

Isto está mais propriamente exposto pelo professor Carlos Alberto da Mata Pinto: "para chegar à conclusão que não é possível, no nosso sistema, utilizar essa expressão sem cometer uma contradição, eis que no nosso sistema, a todo o direito corresponde um sujeito". Para se tornar sujeito é preciso ter algum direito e para existir o direito é necessário que ele se ligue a um sujeito, então, não há direito sem sujeito e nem sujeito sem direito. E é por isso que ele sugere uma outra ordem de idéias, quando diz: "se há relação jurídica, tem que haver sujeito do poder e sujeito da obrigação". Não se descortinando um sujeito (nas hipóteses referidas: herança jacente, abandono de título de crédito ao portador) parece preferível relação jurídica imperfeita sob a tese dos estados de vinculação dos bens, não chegando sequer a existir direitos subjetivos.

Como o Direito evita reconhecer que a categoria do sujeito não dá conta de toda a realidade, cria-se, então, "realidade teórica", o estado de vinculação; estado que indica uma qualidade que significa que aquele bem por direito, naquele dado momento transitório, não se encontra vinculado a qualquer-sujeito. A expressão quer dizer exatamente o oposto daquilo que ela sugere: não há vinculação transitória com sujeito algum. Elimina-se, aparentemente, alguma incerteza.

Essa ordem de idéias que estava e está presente no nascituro, no começo da vida, em seu sentido jurídico, também pode estar presente ao final da vida, no fenômeno da ausência. A morte biológica, de um modo geral, coloca fim a vida. Entretanto, a falta ou a impossibilidade da comprovação da morte biológica gera a necessidade muitas vezes de provar e selar a morte, ainda que biologicamente não seja possível. E há inúmeras circunstâncias nesse sentido que sugerem esse procedimento; uma delas é a necessidade de administrar bens. Aquele que desaparece do seu domicílio, não deixando procurador ou mandatário, pode ter reconhecida a morte presumida ou o início da sua ausência provocado em juízo. Infere-se, então, que neste modelo todos estão num lugar jurídico, e os que dele se demitem ou nele não permanecem por razões involuntárias podem estar na categoria de ausentes. Assim, ali estão, mesmo não estando fisicamente.

A ausência se desdobra em três etapas fundamentais: administração provisória ou curadoria provisória; sucessão provisória, e, por último, a sucessão definitiva.

É evidente que há mecanismos intermediários em cada uma dessas fases para não deixar o patrimônio sem alguém que por ele zele e o administre. Não há, a rigor, sujeito, mesmo na fase da sucessão provisória, em que os herdeiros ou sucessores têm a imissão na posse, e não são eles ainda os titulares formais daquela massa de bens. Os herdeiros só passam a ser sujeitos desse patrimônio a partir da sucessão definitiva. E, mesmo assim, é possível imaginar o regressam daquele que já teve a sua ausência declarada e as seqüelas que o regresso possa trazer no campo patrimonial e no pessoal e familiar.

A personalidade projeta o plano não apenas da titularidade do direito, como também no exercício. E aqui, emerge a noção de capacidade. O capaz, do ponto de vista do direito, é aquele que tem aptidão genérica para ser sujeito de direitos e obrigações. Não obstante, o fato de ter essa capacidade abstrata não significa que tenha a capacidade concreta, ou seja, a capacidade dita de exercício, ou de gozo dos seus direitos. Esse exercício é aquele que o sujeito deve fazer, por si, se puder.

A capacidade se subdivide em dois momentos fundamentais: o primeiro é aquele em que o sujeito exercita o direito que integra a esfera jurídica por si mesmo; o segundo se dá quando ele tem personalidade jurídica e capacidade de direito, todavia, não tem capacidade de exercício por si, mas como o direito lhe pertence, ele pode colocar esse direito no tráfego jurídico. Não podendo decidir sobre isso, o sistema jurídico arma uma moldura instrumental para viabilizar esse tráfego, e o faz mediante os institutos da representação e da assistência.

Tratando-se de incapaz absoluto, o sujeito é representado; tratando-se de incapaz relativo, é assistido. É para isso que servem os artigos 3° e 4° do novo Código Civil, ou seja, para fazer a distinção clara do rótulo entre o incapaz absoluto, aquele que não tem qualquer grau do exercício, e aquele que é incapaz relativo. A palavra relativo quer dizer que os incapazes relativos o são em relação a certos atos.!"

A curatela, quer seja a dos relativamente incapazes, quer seja a própria curatela da patologia da sanidade, fronteiriça ou transitória, é um instituto jurídico de representação dos incapazes que permite, no caso concreto, uma mensuração da impossibilidade do exercício. Não há regra geral que sempre faça do curatelado interditado para todos os efeitos; estará interditado para os efeitos que a sentença da interdição declarar. O procedimento da curatela se ata sempre à verificação do caso concreto. E é por isso que o sistema jurídico adota a seguinte formulação: a regra é que todos sejam capazes. Tanto é assim que, no sistema do Código, não há rol de capacidade, e não se encontra no Código uma definição do que seja, exatamente, a capacidade. O Código, nesta matéria, estabeleceu a exceção, ou seja, o rol dos incapazes. E o fez a partir de alguns juízos de exclusão jurídica, como de diminuição da capacidade de exercício, ao distinguir, como já mencionado, os incapazes.

Os atos praticados por relativamente capazes, na esfera do artigo 171 do NCC, são reputados como atos anuláveis. Essa capacidade, portanto, reveste a idéia de ser para o Direito, ou seja, a capacidade é o modo de ser perante o Direito, e compreende, no plano das pessoas tidas naturais ou físicas, uma outra dimensão que é a dimensão do estado jurídico. Em seguida, nesse plano, aparece a ligação a um dado ente, e ao dizer identidade, coloca-se a pessoa diante de uma entidade, que pode ser a família, o estado familiar da pessoa natural. Dela se aparta, para esse efeito de configuração, a pessoa jurídica.

Marcos Katsumi Kay - N1