quarta-feira, 25 de junho de 2008

CÓDIGO CIVIL DE 1916 - Características substanciais e formais

Luís Fernando Lopes Pereira (2006), comentando sobre as bases do absolutismo jurídico, ensina que da lógica do jusnaturalismo, que se consolida com iluminismo do século XVIII, surgiria a pretensão de se definir procedimentos intelectuais capazes de deduzir dos axiomas identificados sobre a natureza humana outras normas. Prossegue que essa visão mecanicista se concentra em explicações no nível temporal, visível, físico de onde se retirariam leis cósmicas que fundamentariam a codificação do século XIX. Os vínculos sociais, portanto, passam a ser vistos como fatos artificiais da vontade, donde resulta que na base do direito está a natureza individual, a vontade, fundamento da teoria dos direitos subjetivos vistos como poder de vontade garantido a certo sujeito pelo direito; tais direitos atribuídos seriam anteriores à ordem jurídica, pois viriam da condição natural do homem que, portanto, pode criar direitos a partir de atos de vontade ilimitados, os negócios jurídicos. O modelo individualista é calcado no homem de negócios (o selfmade man). Essa seria a base da lógica contratualista que se consolida exatamente no contexto histórico de desenvolvimento do capitalismo mercantil, quando a burguesia exigia um direito claro e simples, abstrato e sistemático que lhe desse segurança, estabilidade e certeza. Daí toda a atividade jurídica moderna ser ao contrato vinculada (pacta sunt servanda).

O Código Civil de 1916, embora nascido no século XX, reflete bem a lógica acima citada. Foi elaborado, na visão de Velloso (2002), nos moldes das codificações oitocentistas, como um sistema normativo total, completo e acabado, com a pretensão à plenitude legislativa, à normalização de todos os fatos da vida civil com a exclusão de qualquer outro diploma legislativo. Foi concebido, também, como um sistema jurídico revestido de completude lógica, hábil a, por seus preceitos abstratos, ser aplicado a todas as situações da vida real. Embora reconhecida a existência de lacunas, previu-se, na Introdução, critérios para a solução dos casos omissos, de modo a atender ao postulado da plenitude da codificação. Concretizou-se o mito jusracionalista da completude legislativa e lógica, o qual, conjugado com a técnica legislativa da fattispecie, leva à prevalência do valor da segurança em detrimento da justiça material, o que é expresso no pensamento jusracionalista de Leibniz, que afirma ser preferível que alguns sofram injustiças do que alimentar o mal coletivo de um direito incerto.

A influência do caráter patrimonialista e individualista das codificações oitocentistas, alicerçadas na filosofia iluminista, levou a que Clóvis Beviláqua elaborasse o Código Civil com suporte na igualdade abstrata dos sujeitos de direito. Pessoa é o ser a que se atribuem direitos e obrigações. Equivale, assim, a sujeito de direitos. Personalidade é a aptidão, reconhecida pela ordem jurídica a alguém, para exercer direitos e contrair obrigações.

Não é sem razão o dizer de Jussara Meirelles (1998) no sentido de que o Código Civil de 1916 é o estatuto patrimonial do homem. Ao Código não interessa os anseios da pessoa humana - sua dignidade -, pois é voltado quase que exclusivamente à proteção do patrimônio que a pessoa carrega, e, via de conseqüência, esta só se vê protegida na medida em que pretende movimentar seus bens. Aí reside o preconceito do Código, pois olvida da pessoa que não possui patrimônio, sendo, pois, relegada a segundo plano.

Com a tímida utilização de cláusulas gerais, de princípios e de conceitos jurídicos indeterminados, os dispositivos do código são elaborados predominantemente segundo a técnica legislativa casuística. A técnica casuística, típica da codificação oitocentista, consiste na formulação das normas como fattispecie, na elaboração dos artigos segundo a lógica clássica do suporte fático abstrato e dos efeitos respectivos, ou seja, de hipóteses abstratas específicas e circunstanciadas às quais são atribuídas conseqüências jurídicas pré-estabelecidas com precisão, abrindo diminuto espaço à consideração das peculiaridades do caso concreto, à situação fática em sua especificidade e, de conseguinte, à atividade de graduação judicial. Por meio da técnica casuística o legislador cria um repertório de figuras e disciplinas típicas, atribuindo aos juízes uma atividade passiva de subsunção, segundo uma lógica formal, levando, pois, à incomunicabilidade entre o código e a situação regulada.

Ao caráter fechado do sistema interno decorrente do amplo emprego da técnica casuística consociou-se, inicialmente, um sistema externo fechado, dificultando sobremaneira a ocorrência de mutações e a atividade judicial criativa, o que teve como consectários uma rigorosa incomunicabilidade com a realidade e, de conseguinte, a inadequação do código para a normatização da sociedade contemporânea, dinâmica e cada vez mais complexa e diferenciada.

Sua viabilidade era decorrente da estabilidade da estrutura social e do abstencionismo estatal na esfera econômica, característicos dos modelos liberais burgueses. Não havia, assim, a necessidade de conformação do sistema jurídico civil a rápidas e significativas alterações políticas e sociais, ensejando a manutenção de uma codificação rígida, sem a eclosão de uma legiferação especial significativa; fenômeno que, no entanto, foi verificado no curso da vigência do Código Civil de 1916.

Refere ser a garantia da autonomia privada como livre escolha de fins uma das características fundamentais do mundo da segurança, do mundo dos códigos, que traduzem os valores do liberalismo oitocentista. Prezava-se sobremaneira a liberdade civil, a vida como livre escolha dos fins, relegados aos cálculos de conveniência e à incontrolável valoração dos indivíduos. Escolhendo os fins a serem perseguidos, esses assumiam a responsabilidade da iniciativa, sendo a assunção dos riscos justamente a contrapartida dessa liberdade. Ao Direito era reservada a função de fornecer os instrumentos necessários ao pleno exercício da autonomia privada, não devendo se imiscuir na ordem privada. A segurança era atinente às regras, abstratas e gerais, do jogo, não à obtenção dos fins, motivo da não-consagração, como regra, na codificação oitocentista e no nosso código de 1916, de formas de revisão contratual.

A pretensão à imutabilidade dos institutos básicos do Código - o direito de propriedade, a liberdade contratual e a sucessão concebidos de forma absoluta - e a exigência de estabilidade estavam nas raízes da codificação, sendo ignorada a idéia de um controle sobre os fins privados, em consonância com a ética da liberdade kantiana que permeava todo o sistema. No entanto, como já referido, a realidade político-social mudou sensivelmente logo após o início da vigência do código de 1916, a demandar uma intervenção estatal que ia de encontro ao espírito deste.

Assinala ainda Velloso (2002) sobre codificação de 1916 seus traços característicos, dentre os quais sobressai a adoção da bipartição da codificação em Parte Geral e Parte Especial. O código apresenta uma Parte Introdutória complexa, composta, originariamente, pela Lei de Introdução, pela Parte Geral e por partes gerais de cada matéria, consubstanciadas por disposições gerais que estão inseridas nos dispositivos inaugurais de diversos livros, títulos e capítulos do Código, evidenciando, assim, o forte espírito analítico e sistematizador daqueles que, mediata ou imediatamente, elaboraram essa codificação.

Assim como as Partes Gerais da Consolidação e do Esboço de Teixeira de Freitas, está inserida a Parte Geral do Código Civil de 1916 no sistema de noções de direito civil propriamente ditas, veiculando disposições gerais de direito civil; desempenha, desse modo, uma função cientificamente fundante de todo o sistema.

O sistema consagrado na Parte Geral do Código Civil de 1916 é assentado numa Teoria do Ato Jurídico, com a definição dos atos lícitos, ilícitos e dos fatos juridicamente relevantes, em regras com forte inspiração na doutrina pandectista alemã, consistindo, por se revestir de uma lógica interna imanente, num verdadeiro sistema interno. Caracteriza-se por ser central, permitindo a recondução dos casos particulares, via o raciocínio lógico-subsuntivo, às categorias mais gerais que estão postas no seu topo, prontas para permitir a dedução escalonada das espécies.

A abstração, que permeia toda a codificação, também está presente na Parte Geral, carente de dispositivos, tais como as cláusulas gerais, hábeis a viabilizar a consideração da situação fática ou a atividade judicial criativa.

O Código Civil de 1916 é permeado por uma eticidade formal, embasada na ética da liberdade e do dever kantiana, que foi o pano de fundo da pandectística do século XIX. Essa eticidade é fundada na igualdade formal, desconsiderando as reais condições sociais dos indivíduos concretos, que eram indiferentes para a ordem jurídica liberal. O conceito da igualdade formal e o ideal de uma legislação geral clara e simples levaram à adoção da técnica do sujeito de direito único, abstrato, desprovido de qualquer atributo social diferenciador; conceito, ideal e técnica que se pressupõem um ao outro e se condicionam reciprocamente.

Tais aspectos, como já aludido, encontram-se presentes de forma incontestável no Código Beviláqua. A pessoa era tida como mero sujeito de direitos; a personalidade correspondia à capacidade de direito; e a técnica legislativa da fattispecie servia à igualdade formal, mas não à material. A eticidade formal denotava o caráter individualista do Código de 1916, o qual é evidenciado, dentre outros aspectos, pelo embasamento do regime contratual no princípio da autonomia da vontade considerada como livre escolha de fins, pela irreversibilidade dos vínculos contratuais, pela não-subordinação do direito de propriedade a fins sociais.

O individualismo consistiu um elemento consciente no trabalho de Clovis Beviláqua. A inserção no código de preceitos consagradores das demandas sociais foi considerada inadequada por Beviláqua, em virtude de não estarem, à época, devidamente assentadas e reconhecidas. Concebeu, assim, que não deveria haver uma intervenção funesta na economia da vida social, pois as codificações sempre foram mais trabalho de depuração, de condensação, de enfeixamento, de classificação, de metodização, do que aventurosos trânsitos por sendas mal desbravadas. Quando da elaboração e promulgação do Código Civil de 1916, predominava o individualismo, concepção político-filosófica vigorante após a Revolução Francesa, consolidada com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão e com base na qual foi promulgado o Código Napoleônico. As características e as bases axiológicas da sociedade da qual o Código Civil de 1916 era um reflexo estavam, à época da elaboração deste, em nítido declínio, o que embasa a assertiva de que quando o jurisconsulto elaborou o seu monumental Projeto de Código Civil, estava, talvez sem o perceber, no crepúsculo de uma civilização e de uma cultura. Assim, a atitude de Clóvis Beviláqua foi eminentemente conservadora, pois ele codificou para uma sociedade patriarcal que ainda não tinha nenhuma experiência da época industrial; ele legislou para um Brasil agrícola e patriarcal.

Na seara do Direito de Família, o caráter patriarcal surgia como base axiológica marcante do Código Beviláqua, expressa primordialmente pela posição de domínio que as figuras do pai e do marido exerciam no âmbito do direito de família. A família, por sua vez, era matrimonializada, assentada no instituto do casamento, ao qual era associada a legitimidade dos filhos, com a classificação dos filhos em legítimos, naturais, espúrios e adulterinos.

Verifica-se em Luiz Edson Fachin (2003) que, sem embargo, o sistema de família no Código de 1916, ainda que tenha resistido por décadas, foi, aos poucos, suplantado. O sistema foi transformado quando os valores da sociedade já eram outros. Os valores que inspiravam a regulação jurídica do patrimônio e que foram abrigados pelo Código, não raro serviram como um escudo a essas transformações. Os fatos vão se impondo perante o sistema codificado que recolhe o princípio da igualdade. A partir de um reconhecimento já efetivado, a igualdade era confinada a uma consideração formal e abstrata que levava em conta categorias abstratas, deixando à margem sua consideração concreta. A igualdade passava a ser vista como um conceito e, sendo assim, era uma categoria distanciada da realidade. No direito que inspira o sistema, emerge a idéia hoje pacífica, mas que inicialmente possuía ares de atentado de que os desiguais devem ser desigualmente tratados para se tornarem iguais. O discurso é o de reconhecimento de desigualdades. A igualdade material sugere o reconhecimento das diferenças.

Ultrapassada também se encontra a fixação rígida de espaços normativos. Há searas novas, ambivalentes, nelas se inserindo interesses de dupla face, a exemplo da proteção à criança e ao adolescente, bem como no campo das relações de consumo que recaem sobre serviços bancários ou de entidades de crédito. Constata-se, pois, uma mudança de paradigmas. Havia um código do contrato, como um código do patrimônio, pronto e acabado no Código Civil. O contrato estava confinado ao dogma da vontade, hoje se submete a algumas interrogações sobre a amplitude da possibilidade da intervenção judicial, na autonomia dos contratos e da ética contratual. Onde se dizia que o proprietário tem o direito de dispor, de fruir e de utilizar, a legislação e jurisprudência posteriores vão dizer que tem o direito de dispor nos limites da lei, sendo que esta, por sua vez, se submete a outro princípio que gerou uma funcionalização desses direitos, uma operação de redução da amplitude dos poderes do titular privado em face dos princípios constitucionais.

No Direito Civil, as definições, de um modo geral, acabam sendo, assim, excludentes. Fornecem um catálogo legal no qual a codificação pode desempenhar esse papel de exclusão. O sujeito hipoteticamente livre e senhor de sua circunstância goza de formal dignidade jurídica. Sob seu jugo estão o objeto, as coisas e a própria Natureza. É nessa percepção que foram excluídos todos os que não tiveram acesso a tal dignidade jurídica, bem como o "conjunto das condições da própria natureza humana, suas restrições globais de renascimento ou de extinção". A crise não se dá apenas no modelo do pensamento jurídico, nem é apenas um incidente no legado teórico do destaque das individualidades. A realidade contemporânea arquivou o projeto do conceitualismo. Se mesmo assim o século XIX continua em moda, a rejeição a essa fundamentação do direito pode alcançar uma afirmação da qual a consciência crítica não pode fugir, não há sistema neutro.

Marcos Katsumi Kay - N1

quarta-feira, 11 de junho de 2008

CÓDIGO CIVIL DE 1916 - A Influência do Code, do BGB e da tradição romanista

Ressalta Clóvis do Couto e Silva (1997) que a maioria dos Códigos latino-americanos sofreu profunda influência do Direito francês e que não se pode dizer que tenha sucedido o mesmo com o Direito brasileiro. A razão principal está no fato de terem vigorado no país as Ordenações Filipinas até a entrada em vigor do Código Civil brasileiro, em 1916 - portanto, por mais 300 anos. As noções de propriedade, família e contratos são, ainda, as da última fase do Direito Comum, pois o Código Civil germânico publicado em 1900 não foi considerado durante o período de tramitação do Código Civil, e poderia ter sido, pois ele somente foi publicado em 1916. As alterações verificadas entre 1899 e 1915 foram, em sua maioria, apenas formais, resultantes principalmente das críticas de Rui Barbosa.

Talvez a melhor metodologia para se denotar as diversas influências na codificação de 1916 consista na análise das principais concepções acolhidas pelos grandes juristas brasileiros que trabalharam em projetos dos quais resultou o Código Beviláqua.

Para se entender o sistema do Código Civil de 1916 é imprescindível que se exponha, preliminarmente, a influência do pensamento de Teixeira de Freitas. Embora não tenha atuado diretamente na elaboração do Código de 1916, suas influências sobre este são significativas, como já exposto em tópico anterior. Por outro lado, juristas que tiveram destacado papel na elaboração e crítica do projeto do Código Civil de 1916, tais como Tobias Barreto, Clóvis Beviláqua e Rui Barbosa, são expoentes da denominada Escola Alemã de Recife, que, fundada pelo primeiro, difundiu a ciência jurídica alemã no país, cujos juristas eram acostumados a uma orientação até então quase que exclusivamente francesa. Os sistemas de Savigny e dos pandectistas exerceram uma significativa influência no pensamento de Clóvis Beviláqua.

Acrescenta Almiro do Couto e Silva (2003) que os Códigos mais recentes, como é o caso do Código Civil brasileiro, foram tributários do gigantesco esforço de análise e sistematização empreendido pela pandectística alemã do século XIX, que, trabalhando de modo especial sobre o direito romano, acentuou consideravelmente o aspecto da racionalidade de suas normas. O cientificismo jurídico foi o método de que se serviu a pandectística, que se propunha a organizar e articular toda a matéria jurídica num sistema completo, limado e polido outra vez pela razão, e tão densamente fechado que impossibilitasse o juiz, ele próprio formado nessa ciência jurídica, de rebelar-se contra a sua lógica interna.

Para o autor, o direito romano consiste numa experiência, como direito na nação romana, de aproximadamente mil anos, e que após o ocaso do Império Romano do ocidente, ele sobrevive ainda, embora em forma vulgar, decadente, degradado e corrompido, como direito dos povos bárbaros que dominam a Europa e, igualmente, no direito bizantino. No século XII, com Irnério e a Escola de Bolonha, é ele redescoberto e reestudado, para ser depois, recebido como direito comum, de caráter subsidiário, na maior parte dos países europeus, formando, com a filosofia grega e a religião cristã, a base de cultura da assim chamada civilização ocidental. Houve, portanto, vários direitos romanos.

O direito romano chegou ao nosso Código Civil, sobretudo, pela obra da codificação justinianeia, filtrada pela experiência jurídica portuguesa, na qual, quase desde as suas origens, exerceu importantíssima função como direito subsidiário, ao lado do direito canônico. Levará, porém, algum tempo até que o direito português passe a beber diretamente nas fontes romanas. A estas tinha acesso, apenas, o reduzido número das pessoas que liam latim e que haviam tido a ocasião de estudar em universidades estrangeiras ou na recém criada universidade portuguesa. Os demais, quando aplicados aos misteres da justiça ou da administração do reino, estabeleciam contato com o direito romano ou com o direito canônico mediante textos que só indiretamente os espelhavam, como sucedia com as coletâneas jurídicas castelhanas.

Com o andar do tempo cresce o número dos interessados em conhecer o direito romano nos seus próprios mananciais. Com a promulgação das Ordenações Afonsinas, em 1446 ou 1447, declara da prevalência do direito português sobre o direito subsidiário. Esse estado de coisas perdura nas Ordenações Manuelinas, do início do século XVI e nas Ordenações Filipinas, do começo do século XVII (1603) que tornam a afirmar a preeminência das fontes imediatas do Direito, consistentes nas leis nacionais, estilos da corte e costumes do Reino sobre o direito subsidiário. Na hipótese de o direito romano e o direito canônico não terem solução para o caso concreto, dever-se-ia recorrer à Glosa Magna de Acúrsio ou à opinião de Bártolo.

Almiro (2003) permite a interpretação o Germanismo num sentido mais largo, abrangendo as criações do pensamento jurídico alemão, posteriores à recepção, que foram acolhidas na nossa codificação, por inteiro ou modificadas ou que a ela serviram de inspiração. Em tal perspectiva, a investigação dos traços deixados no Código Civil de 1916 terá necessariamente de considerar a contribuição romanista da ciência jurídica alemã, que começa com Savigny, e que depois se irá desenvolver notavelmente com a pandectística, na qual brilha singularmente a obra de Windscheid, culminando com o BGD (Bürgerliches Gesetzbuch), concluído em 1896, mas que entrou em vigência em 1900. Dizendo de outro modo, por germanismo, nesse sentido, não se considerará a matéria sobre a qual trabalhou a ciência jurídica alemã (matéria predominantemente romana), mas apenas e exclusivamente essa ciência jurídica.

Quem se debruçar sobre a obra de Teixeira de Freitas ou dos grandes juristas brasileiros da fase imediatamente anterior à da elaboração do nosso Código Civil, como o próprio Clóvis Beviláqua, logo perceberá a intimidade que tinham esses autores com a obra dos mais célebres juristas germânicos do seu tempo. Deve-se dizer, porém, a bem da verdade, que essa intimidade se estendia também aos juristas eminentes, de expressão francesa ou italiana, para não falar nos portugueses. De certa maneira, repetia-se, assim, num plano mais elevado, em que os exageros eram eliminados por critérios críticos bem mais estritos, o que acontecia nas práticas forenses, onde os advogados, no afã de convencerem os juizes, invocavam farta doutrina estrangeira, reiterando uma praxe que se consolidara desde a Lei da Boa Razão. É oportuno que se saliente, no entanto, que a literatura jurídica alemã do século XIX qualitativamente sobrelevava a todas as outras, contrabalançando, poderosamente, a influência que o Código Civil Francês exerceu sobre a legislação de outros povos.

Savigny, os pandectistas e seus sucessores deram origem a uma doutrina que combinou pela primeira vez os métodos históricos com os de uma dogmática sistemática e elaborou os conceitos jurídicos e os princípios gerais com um grau de clareza e de refinamento que anteriormente nunca tinha sido atingido. Foram os alemães, sem sombra de dúvida, os pais da ciência jurídica moderna, que encontra seu coroamento no BGB. Comparada essa monumental obra legislativa com as primeiras codificações do século XIX, de imediato se destaca a superior qualidade técnica do BGB. O desenvolvimento científico do Direito, ocorrido na Alemanha, no curso do século XIX, bem como as modificações culturais, econômicas e políticas por que passou o mundo nesse mesmo período de tempo, envelheceram e desgastaram, prematura e severamente, o Código Civil francês. Muito embora fosse ele a expressão mais alta do jusnaturalismo racionalista, elaborado, portanto, e posto em vigor com a pretensão de haver cristalizado uma ordem jurídica abstrata e atemporal, que deveria servir a todos os povos, motivo pelo qual intérpretes e aplicadores estavam proibidos de desnaturá-los, muito cedo se verificou que ele não representava o fim da história jurídica. E quem se incumbirá de mostrar isso será, precisamente, a Escola Histórica, em todos os seus desdobramentos, e o novo humanismo que a caracteriza, em poucas palavras, a ciência jurídica alemã do século XIX.

Ainda segundo Almiro (2003), ao efetuar o cotejo entre o BGB e aqueles outros códigos, observa-se que estes não haviam estabelecido regras sobre as pessoas jurídicas (o que foi objeto de meditação pela doutrina alemã); a fundação lhes é desconhecida, do mesmo modo como a noção de atos jurídicos e de suas diferentes categorias; seu tratamento da nulidade dos atos carece de precisão; eles não contêm normas sobre a conclusão dos contratos, a representação, a estipulação em favor de terceiros, a cessão de crédito e a assunção de dívida; a causa e o ato abstrato são representados desde então (desde o BGB) sob uma nova luz; do mesmo modo como o enriquecimento sem causa e a posse.

Não pode causar surpresa que muitas dessas imperfeições apontadas no Código Civil francês (e o mesmo se poderá dizer de outros códigos que receberam sua direta influência) estejam ausentes no Código Civil de 1916, como também certamente não espantará que nele tenham sido acolhidos progressos técnicos revelados ou introduzidos pela ciência jurídica alemã, não só em razão da sua excelência, mas também porque a chamada Escola do Recife, sob a liderança de Tobias Barreto, dera considerável importância e prestigio à cultura germânica no campo do Direito. Cabe lembrar, nessa ordem de considerações, que Clóvis Beviláqua era professor da Faculdade de Direito do Recife.

Almiro (2003) conclui que seria perfeitamente natural, como o foi, que, em razão da sua maior proximidade histórica, a ciência jurídica alemã, afinal cristalizada no BGB, tivesse sobre o Código Civil Brasileiro uma influência em muitos aspectos mais expressiva que a do Código de Napoleão. O Código Civil Alemão e o brasileiro, diferentemente, propunham-se a ser o coroamento e a conclusão de um prolongada fase de vigência do ius commune, muito mais do que instrumentos revolucionários de mudança da sociedade. Apesar de que a preocupação com a segurança jurídica dos indivíduos estivesse evidentemente entre as motivações principais de ambas as codificações, pois, é óbvio que a maior definição e clareza da ordem jurídica, operada pela codificação, teria essa conseqüência imediata, faltava-lhes a missão propedêutica de educar o povo em um novo credo.

Marcos Katsumi Kay - N1