quarta-feira, 23 de julho de 2008

CÓDIGO CIVIL DE 1916 - A estrutura social brasileira no período de elaboração

Ensina Orlando Gomes (2003) que o Código Civil é obra de homens da classe média, que o elaboraram na preocupação de dar ao país um sistema de normas de direito privado que correspondesse às aspirações de uma sociedade interessada em afirmar a excelência do regime capitalista de produção. Mas esse propósito encontrava obstáculos na estrutura agrária e não recebia estímulos de uma organização industrial a que se somasse o ímpeto libertário da burguesia mercantil. A classe média embora forcejasse por lhe imprimir um cunho liberal e progressista, estava presa aos interesses dos fazendeiros que, embora coincidentes imediatamente com os da burguesia, não toleravam certas ousadias. O pensamento dominante na elaboração do Código Civil sofreu a influência desse desajustamento interno entre os interesses da classe dominante.

Prossegue o autor que, no tempo em que Clóvis Bevilaqua apresentou o projeto de Código Civil, o país era uma nação embrionária, cuja indústria mais importante consistia em uma lavoura rudimentar, extensiva, servida por dois milhões de escravos e, àquele tempo, abolida a escravatura, isto é, na última década do século XIX, por trabalhadores nacionais e algumas dezenas de milhares de colonos de procedência européia; a população em geral pobre, na sua maioria.

A estrutura agrária mantinha no país o sistema colonial. A vida econômica dependia do binômio exportação de matérias-primas e gêneros e importação de artigos fabricados. Predominavam os interesses dos fazendeiros e dos comerciantes, aqueles produzindo para o mercado internacional e estes importando para o comércio interno. Eram coincidentes. Não havia descontentamentos que suscitassem grandes agitações sociais. Os proprietários de terra necessitavam de bens que o país só podia obter mediante importação. Para essa função, uma burguesia mercantil desenvolveu-se, estabelecendo-se em pontos estratégicos do litoral. A preservação e a defesa desses estavam confiadas a uma classe média escassa que exercia cargos burocráticos de um país que se organizava.

Para a organização social do país, a racionalização dos interesses dos fazendeiros e comerciantes se processou por intermédio dessa classe, que os matizou com os pigmentos de seus preconceitos. Ajustada à situação econômico-social do país, pelo apoio que recebia da burguesia rural e mercantil, transfundiu na ordem jurídica uma legislação inspirada no direito estrangeiro, que, embora estivesse, muitas vezes, acima da realidade nacional, correspondia aos interesses a cuja guarda e desenvolvimento se devotava.

Nas cidades, em estabelecimentos comerciais de mercadorias importadas, a burguesia mercantil imitava nos hábitos sociais, no estilo de vida, e na própria institucionalização das idéias, as camadas superiores de povos de estrutura econômica e social muito mais desenvolvida, dando uma falsa impressão de progresso cultural. Aquela aparência de civilização, brilhantemente ostentada em meia dúzia de capitais contrasta de modo chocante com o atraso geral, em que permaneciam, principalmente, as populações do campo. Como a economia do país estava baseada na exploração da terra por processos primários e dependia do mercado externo, a renda dos fazendeiros só poderia ser obtida mediante à exploração do trabalhador rural em escala. O comerciante, tanto importador como exportador, tinha interesse vital na conservação desse sistema. Os grupos dominantes da classe dirigente - a burguesia agrária e a burguesia mercantil - mantinham o país subdesenvolvido, porque essa era a condição de sobrevivência dos seus privilégios econômicos e da sua ascendência social no meio em que vivia.

Por esse interesse fundamental, entende Gomes (2003), que explicam suas inclinações ideológicas. Para defendê-lo encontram no liberalismo econômico sua mais adequada racionalização. Os expoentes da intelectualidade brasileira de então, situados na classe média, inspiravam-se no pensamento e nas formas de povos mais adiantados, transplantando ao nosso solo instituições estrangeiras, que nessas começavam a murchar. O desenvolvimento das metrópoles, então dependente da atividade econômica da burguesia mercantil, interessava fundamentalmente às classes médias, e, de modo particular, à elite intelectual.

No plano político, o controle dos dois setores mais importantes da burguesia, especial e notadamente da burguesia rural, se exercia sob a forma da política de clientela eleitoral. Os grandes proprietários rurais nomeavam os legisladores e governadores, assegurando, desse modo, a defesa de seus interesses básicos. Nos quinze primeiros anos do século XX, o desenvolvimento do colonialismo atinge o seu maior grau, estimulado pelo incremento do comércio internacional e pela facilidade da mão-de-obra decorrente da imigração.

Nesse período de prosperidade, os quadros políticos do país se ampliam. As formas de organização econômica, política e social dos povos mais adiantados transplantadas para o país acomodam-se e se aclimatam, com as inevitáveis deformações. Enquanto a burguesia mercantil aspirava a um regime político jurídico que lhe assegurasse a mais ampla liberdade de ação, preconizada pela ortodoxia liberal, a burguesia agrária temia as conseqüências da aplicação ao pé da letra, dos princípios dessa filosofia como classe, de que a democratização de fundo liberal se faria ao preço do seu sacrifício. O regime representativo permitia ao proprietário da terra resguardar-se de investidas contra seus interesses fundamentais. Por outro lado, o sistema de franquias liberais aproveitava, tão-somente, a reduzido número, sendo estranho à grande maioria da população miserável e inculta.

Observa o autor que o crescimento da classe média, particularmente devido à urbanização prematura do país, foi provocado, não pela sua industrialização, mas pela expansão do comércio exportador dos produtos agrícolas. As capitais dos Estados marítimos mais desenvolvidos construíram os seus portos para o escoamento da produção e o recebimento de mercadorias estrangeiras, transformando-se em centros movimentados que reclamaram serviços públicos mais amplos e complexos. A República permitira a criação de Escolas Superiores, que logo se difundiram nesses centros, e o teor de vida nas cidades que procuravam imitar as metrópoles litorâneas atraía gente do interior, em regra filhos de fazendeiros ou pequenos negociantes. Cresceu, assim, rapidamente, nas principais cidades, uma pequena burguesia, sem condições de imediato amadurecimento, devido ao baixo nível de vida econômica.

A despeito de se ter apossado dos cargos públicos e das posições de comando, manteve-se subserviente aos interesses da burguesia, os quais passou a expressar em termos políticos adequados, até o momento em que o seu refugio se saturou. Nessa classe média, assim fixada, recrutavam-se os elementos aos quais se confiava o manejo da máquina política e burocrática do Estado. Não possuindo ideologia própria e vivendo em condições favoráveis, devido ao surto de prosperidade já assinalado, a classe média assumiu posição conservadora, procurando dar ao país uma organização social propícia à expansão das forças produtivas cujo ritmo de crescimento se acelerara devido aos fatores já apontados.

Nesse sentido, destaca Keila Grinberg (2001) que as relações patriarcais ainda imperavam no país, como bem o sabia Beviláqua. Diante desse quadro, ele entendia que o Código Civil brasileiro devia ser dotado de um caráter teórico, desvinculado mesmo de alguns aspectos da realidade do país. Dissociar o Código Civil dos próprios costumes da sociedade seria a única maneira de reformá-la, formulando regras abstratas que, ao serem aplicadas à sociedade brasileira, acabariam por forçar a sua transformação. Por isso que, para promover o progresso da nação, o Código Civil devia ser moderno e liberal, livre dos vícios que caracterizaram o passado brasileiro. Porém, o que sonhava Beviláqua e, de certa forma, havia sonhado Teixeira de Freitas, esbarrava em um problema. O direito brasileiro era profundamente marcado pelos costumes escravistas, patriarcais e católicos que formavam a sociedade brasileira.

Marcos Katsumi Kay - N1

quarta-feira, 9 de julho de 2008

CÓDIGO CIVIL DE 1916 - Importância do anteprojeto de Teixeira de Freitas

Para se entender o sistema do Código Civil de 1916, reforça Andrei Pitten Velloso (2002), é imprescindível que se exponha, preliminarmente, a influência do pensamento de Teixeira de Freitas, pois a Consolidação das Leis Civis, elaborada em 1857, com base nas Ordenações Filipinas de 1602, alcançou até 1917, mais do que meio século, a autoridade de um verdadeiro Código Civil Brasileiro e o Código de 1916 incorporou, em larga medida, a noção de sistema formulada por Teixeira de Freitas.

Em vista do estado caótico da legislação, o governo imperial incumbiu a Teixeira de Freitas, em 15 de fevereiro de 1855, a consolidação das leis civis, com a obrigação de coligir e classificar toda a legislação pátria, inclusive a de Portugal, anterior à independência do Brasil. A natureza e a marcha da ingente tarefa foram bem compreendidas pelo jurisconsulto encarregado de realizá-la. Tratava-se, segundo Gomes (2003), de mostrar o último estado da legislação, reduzindo a proposições claras e sucintas as disposições em vigor, com citação, em nota correspondente, da lei que autorizava cada preceito, ou declaração do costume que estivesse estabelecido contra ou além do texto. O objetivo era a elaboração de trabalho preparatório da codificação. A obra excedeu a toda expectativa, constituindo marco decisivo na evolução do direito civil brasileiro. Por seu intermédio, o direito português conservou-se no Brasil. Foi resguardada, no possível, a continuidade da tradição jurídica do país, apesar de todas as conquistas do espírito inovador, e da influência, então inevitável, dos códigos e dos autores estrangeiros. A Consolidação das Leis Civis condensa os resultados da experiência jurídica lentamente acumulada sobre a carcaça débil das Ordenações.

Não fosse por essa condensação, por certo as Ordenações do Reino não teriam vivido até 1917. É verdade que o Código Civil a ela não se ateve. Mas a Consolidação facilitou a obra do codificador.

Prossegue Gomes (2003) que a influência de Teixeira de Freitas não se fez presente apenas através da construção magistral em que reuniu e sistematizou os elementos esparsos da desordenada e contraditória legislação emigrada. Exerceu-se também por meio do Esboço, que embora não houvesse sido aproveitado diretamente entre nós, como o foi em outras nações ibero-americanas, inspirou disposições do Código Civil, notadamente da parte geral, do direito das obrigações e de certos institutos da direito das coisas. Ao proceder à consolidação da caótica legislação esparsa, Teixeira de Freitas procurou criar um real sistema no Direito Civil pátrio, tarefa à qual se dedicou, inicialmente, quando da elaboração da Consolidação das Leis Civis, concluída em 1857, e, ulteriormente, do Esboço do Código Civil. Com tal intenção, Teixeira de Freitas buscou examinar as leis em seus próprios textos, sem influência de alheias opiniões, para conhecer a substância viva da Legislação. Essa concepção, de sistematizar um Direito Civil positivo pátrio, aplicada à Consolidação, significou uma vultosa mudança de rumo em relação à tradição do Bartolismo, que, primordialmente pela falta de critérios que sua aplicação denotava, tornava tormentosa a prática judiciária.

A concepção sistemática de Teixeira de Freitas, nos dizeres de Velloso (2002), não se confunde com a sistemática jusracionalista, tendo sofrido, ainda, nítida influência da pandectística, o que é revelado pelo fato de ter organizado a Consolidação com base na bipartição da codificação já empregada na obra dos pandectistas. Essa bipartição consistia na divisão estrutural da codificação em uma Parte Geral, à qual, na obra de Teixeira de Freitas, cabia tratar dos elementos constitutivos de todas as relações jurídicas, e uma Parte Especial, que regrava os direitos pessoais e reais. No Esboço, elaborou uma teoria dos fatos jurídicos que seria a base do sistema interno da consolidação, do Esboço e, ulteriormente, do Código Civil.

Teixeira de Freitas, pretendendo a unificação do Direito Privado, desinteressou-se do projeto, pois considerava arbitrária a divisão entre o direito civil e o comercial, propondo, na célebre carta dirigida a Martim Francisco, a elaboração de dois códigos: um Código Geral ou Código Geral de Direito Privado, propedêutico ao conjunto dos ramos jurídicos, e um Código Civil, que absorveria a legislação mercantil. Essa proposta denota a maior tentativa que se fez até hoje de se transpor para a lei uma teoria geral do direito de conversão em jurídico do jurídico-científico. A não aceitação de sua proposta importou com que fosse, em 1872, declarada a resolução de seu contrato para a elaboração do Código Civil.

Uma segunda razão, citada pelo professor Ricardo Marcelo Fonseca (2006) para o fracasso da tarefa de codificação encontra-se na decisão de Teixeira de Freitas de, fiel a seu espírito liberal, negar-se a estabelecer uma disciplina jurídica para a escravidão dos negros. Com efeito, escreveu ele claramente no seu Esboço o seguinte: "Sabe-se que nesse projeto prescindo da escravidão dos negros, reservada para um projeto especial da lei; mas não se creia que terei que considerar os escravos como cousas. Por muitas que sejam as restrições, ainda lhes fica aptidão para adquirir direitos; e tanto basta para que sejam pessoas". Assim, as convicções de Teixeira de Freitas entravam em choque com um dos pilares centrais dos interesses das elites, para quem um código civil não podia simplesmente ignorar as estruturas escravocratas da sociedade agrária brasileira, inviabilizando, assim, o sucesso de seu projeto. Outras tentativas de codificação da legislação civil (muito menos célebres, contudo) foram ainda tentadas no Brasil imperial: a de Nabuco de Araújo (1872) e a de Felício dos Santos (1881) cujos projetos, que muito deviam ao Esboço de Teixeira de Freitas, acabaram barradas quer pela rejeição do Ministério da Justiça e do parlamento, quer pelo final do regime imperial em 1889.

Embora não tenha atuado diretamente na elaboração do Código de 1916, suas influências sobre este são significativas. Como refere Pontes de Miranda (1981), Clóvis Beviláqua elaborou, em 1899, o Código Civil de 1916 aproveitando, primordialmente, os projetos de Teixeira de Freitas, de A. Coelho Rodrigues e de Felício dos Santos, sendo que a presença criativa de Teixeira de Freitas na codificação de 1916 foi mais acentuada do que a do próprio Clóvis Beviláqua. Cita ainda o autor que, das aproximadamente 1.929 fontes do Código Civil, ao direito anterior pertencem 479, à doutrina já vigente antes do Código Civil, 272, e ao Esboço de Teixeira de Freitas, 189. Isso quer dizer que, em tudo que se alterou, foi o Esboço a fonte principal. A influência do pensamento de Teixeira de Freitas estende-se até o Código Civil de 2002, primordialmente no que tange à sua concepção de sistema, à unificação do direito das obrigações e à concretude.

Marcos Katsumi Kay - N1