quinta-feira, 3 de abril de 2008

RAMOS, Carmem Lucia Silveira. A constitucionalização do direito privado e a sociedade sem fronteiras. p. 3-17.

RAMOS, Carmem Lucia Silveira. A constitucionalização do direito privado e a sociedade sem fronteiras. In: FACHIN, Luiz Edson. (Coord.). Repensando fundamentos do Direito Civil brasileiro contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 1988, p. 3-17
Estrutura: Fundamentos do modelo de direito privado brasileiro. Do sistema codificado aos estatutos especiais. Da dicotomia direito público-direito privado à constitucionalização do direito civil. A superação do sistema do direito privado clássico. Abandono da neutralidade e leitura interdisciplinar. Passagem da autonomia privada ao interesse social.

Resumo:

Fundamentos do modelo de direito privado brasileiro

Buscar o papel e função dos códigos civis na vida das sociedades dos séculos XIX e XX conduz à vinculação entre as codificações e o modelo liberal de organização do direito, uma vez que estas espelham os princípios e valores consagrados por este paradigma, de onde a crise que ora se delineia revelar a superação destes conjuntos de normas, organizados num sistema racional, pretendendo regular toda a vida da sociedade privada como modo de ver o fenômeno jurídico.

Do sistema codificado aos estatutos especiais

Preocupado em romper com o regime absolutista e seus privilégios de classe, eliminando, ao mesmo tempo, o que foi qualificado como o caráter dispersivo e inseguro do direito do medievo, pelas peculiaridades de sua conotação pluralista, o liberalismo jurídico consagrou, no século XIX, a completude e unicidade direito, que passou a ter como fonte única o Estado, poder ideologicamente emanado do povo a neutralidade das normas com relação a seu conteúdo, e a concepção do homem como sujeito abstrato, como os postulados fundamentais do Estado de Direito.

Na sumarização de Pietro BARCELLONA, o Estado de direito é o Estado da legalidade e da liberdade, dos indivíduos livres e iguais: livres para agir e iguais diante de uma lei igual para todos porque geral e abstrata.

Estas características levaram à redação do conjunto de normas organizado em codificação que, segundo se passou a sustentar, seria suficiente para regular toda a vida da sociedade civil, como lei maior da comunidade, de forma igualitária.

A igualdade, fundada na idéia abstrata de pessoa, partindo de um pressuposto meramente formal, baseado na autonomia da vontade, e na iniciativa privada, no entanto, veio acompanhada de um paradoxo, que traduz uma conseqüência do modelo liberal-burguês adotado: a prevalência dos valores relativos à apropriação de bens sobre o ser, impedindo a efetiva valorização da dignidade humana, o respeito à justiça distributiva e à igualdade material ou substancial.

Foi este paradigma, inaugurado com a codificação francesa, o adotado pelo Código Civil brasileiro de 1916. No texto francês, como no direito pátrio, a autoridade do Estado se conciliava com a soberania do indivíduo, com sua autonomia, decorrente do contrato social, que, no domínio econômico e dos contratos mantinha o Estado numa neutralidade estática, ignorando as desigualdades econômicas, aplicando o regime de igualdade de todos, fortes e fracos, perante a lei, cuja conseqüência foi fazer com que a vontade dos fortes passasse a dominar e oprimir, acabando por tornar-se um regime de privilégio dos fortes, baseado numa ética individualista.

Nos códigos civis típicos do século XIX, o ser humano, personificado como sujeito de direito, titular de direitos virtuais, abstratos, no gozo de sua capacidade de fato e autonomia de vontade tem a capacidade de se obrigar. No entanto, considerando-se o modelo de produção capitalista vigente, o exercício de direitos ficou vinculado à apropriação de bens, restando, à maioria da população, como direito único, o de obrigar-se, vendendo sua força de trabalho.

Qual seja: preocupado com eliminar as discriminações pessoais características do medievo e do período do absolutismo monárquico, o Estado de Direito liberal ignorou as desigualdades econômicas e sociais, considerando todos os indivíduos formalmente iguais perante a lei, parificação esta que só acentuou a concentração do poder econômico capitalista, aumentando o desnível social cada vez mais, na esteira do desenvolvimento tecnológico e produtivo.

Como não poderia deixar de ser, no Brasil esta incoerência, não assumida pela codificação, contribuiu para as desigualdades e exclusão social da porção mais considerável do povo.

No curso do século XX (entendido como tal não a partir de seu momento cronológico inicial, mas pelos marcos históricos que representaram a efetiva ruptura com os cem anos precedentes, cabendo lembrar, como tais, a Revolução Russa de 1917 e o final da Primeira Guerra Mundial, pelas modificações que provocaram nos diferentes Estados, por via direta ou reflexa) - nesta cronologia considerado o Código Civil brasileiro fruto do século XIX - o gradativo abandono da neutralidade do direito (a despeito da influência das idéias de pensadores como Kelsen) provocou a crise deste modelo ideologicamente baseado no individualismo capitalista redigido para regular a vida da sociedade civil como documento completo e único, e de alguns de seus dogmas tradicionais, além do reconhecimento da sua historicidade e vinculação a um momento sócio-político-econômico.

Nesta linha, um dos meios (quiçá o primeiro) a partir dos ,quais se assumiu formalmente o esgotamento e insuficiência do modelo codificado para trabalhar a realidade foi através da edição dos estatutos especiais, regulamentadores de temas específicos, típicos da realidade do século XX (de que são exemplos o condomínio em edificações, a locação de prédios e o parcelamento do solo urbano).

Estes estatutos, designados num primeiro momento como leis extravagantes, foram editados em razão de pressões sociais, para atendimento das mais diversas necessidades, em particular a proteção da parte economicamente mais fraca, que, na passagem de uma realidade rural para a vida urbana, viu-se compelida, v.g. a locar imóveis para moradia, comprar terrenos a prestação, mediante compromissos de compra e venda, por não ser titular de direito proprietário sobre imóveis residenciais, ou a residir em apartamentos, muitas vezes adquiridos antes de serem construídos, ficando, ao assumir estas obrigações, desamparados pelo código civil, ante as lacunas nele existentes a respeito destas relações jurídicas, ou pela inviabilidade de operacionalização do contido no seu texto a propósito de determinados temas, como ocorreu com a locação urbana. Portanto e neste passo, os estatutos revogaram ou complementaram o contido na codificação.

A edição de um número cada vez maior de textos de lei especial provocou uma verdadeira descentralização do sistema de direito privado, ausente na perspectiva dos idealizadores da codificação, excluindo o monismo consagrado no código civil, em atendimento às emergências sociais.

Por via de conseqüência, conforme observou Gustavo TEPEDINO, a recepção destas novas fontes de direito operou uma inversão hermenêutica, uma vez que as regras de interpretação transferiram-se do instituído pelo sistema da codificação para o âmbito das leis especiais, ainda que mantida a aplicação residual do código civil, que se tornou, desta sorte, um sistema fragmentado, ora excluído, ora complementar à constelação de microssistemas estabelecidos.

Da dicotomia direito público-direito privado à constitucionalização do direito civil

Ainda que a recepção da proteção dos interesses sociais, paralelamente aos interesses individuais, embora preservando o paradigma liberal de ordenamento jurídico, tenha-se evidenciado com maior nitidez, se bem que não exclusivamente, como conseqüência do welfare State, o qual, por sua vez, foi uma manifestação característica do período posterior ao fim da Segunda Guerra mundial, pelas profundas transformações econômicas que provocou, levando à preocupação com o meio ambiente e a qualidade de vida da população, o retorno do sentido do direito civil às suas raízes romanas, sua compreensão como o direito do cidadão, só em momento posterior se manifestou.

Hoje reconhece-se a contradição existente em reputar a codificações civis como leis fundamentais da sociedade civil, em oposição ao Estado, pela admissão de que seria absurdo pretender obter proteção do Estado, sem querer submeter-se aos parâmetros de convivência pelo mesmo estabelecidos em razão do interesse público.

Refere Natalino IRTI, a propósito, que não se pode participar das duas naturezas: estar, simultaneamente, fora e dentro do Estado; pleitear proteção e negar-lhe obediência.

Nesta perspectiva, que significa a retomada pelo direito privado de sua vocação original de direito do cidadão - jus civile, em oposição ao sentido de direito burguês, voltado para a proteção de interesses individuais, que lhe foi atribuído a partir da Revolução Francesa, a cidadania deixa de ser considerada apenas uma relação política entre o indivíduo e o Estado, para se fazer presente em outros níveis e espaços sociais e econômicos, como por exemplo na empresa, onde, superando o poder patronal a que tradicionalmente ficava submetido o trabalhador, passa a ele a ter direito de expressão, de informação, de participação (Não há como se esquecer, no entanto, no caso específico dos direitos da cidadania adquiridos pelo trabalhador na empresa, que, em razão da crise econômica, tais direitos vêm sendo retomados pelos dirigentes destas pessoas jurídicas.)

É inquestionável, outrossim, que, se a visão da cidadania sob esta nova ótica é conquista recente no Brasil, e já se acha relativizada no exemplo citado, subsiste intocada em outras situações, v.g. na garantia dos direitos do cidadão perante a administração pública, consistente no respeito obrigatório do princípio do contraditório e da ampla defesa nos procedimentos de natureza administrativa.

Este sentido protecionista e solidarista - voltado para uma realidade sócio-econômica diversificada, de vida predominantemente urbana, em contradição com a vivência rural prevalente à época da edição do código, realidade na qual subsiste a predominância da economia empresarial sobre o capitalista-indivíduo de outrora, momento em que o desenvolvimento social se torna desejável, senão obrigatório, para inserir o país num sistema global, ao qual necessariamente se vincula pelos novos mecanismos econômicos e pelos meios de comunicação - operou-se através da manifestação de forças antagônicas reunidas em assembléia constituinte, que conseguiram delinear, no texto constitucional, elementos desta evolução, adequando as categorias jurídicas tradicionais às atuais exigências sócio-econômico-culturais brasileiras, se não efetivamente, pela fragilidade dos mecanismos existentes para sua operacionalização, pelo menos no texto da lei maior.

Esta dificuldade em operar o texto constitucional, no sentido de tornar efetivas as garantias ali instituídas, pode ser relacionada com a seguinte circunstância: ao reconhecer as falhas e o caráter ultrapassado do modelo codificado para trabalhar com a realidade, adotou-se a mesma estrutura lógico-formal a partir da qual foi engendrado o sistema jurídico vigente, cuja sobrevivência, neste passo, foi garantida, de onde a pertinência, v.g. da continuidade da discussão relativa à aprovação de um novo código civil para o Brasil, quando poderia ter sido feita a opção pela descodificação.

É necessário reconhecer, no entanto, que as disposições inseridas na carta constitucional alteraram qualitativamente o conteúdo das categorias abordadas, num movimento de ruptura, buscando atender às aspirações da sociedade brasileira no limiar do novo século.

Assim, ao recepcionar-se, na Constituição Federal, temas que compreendiam, na dicotomia tradicional, o estatuto privado, provocou-se transformações fundamentais do sistema de direito civil clássico: na propriedade (não mais vista como um direito individual, de característica absoluta, mas pluralizada e vinculada â sua função social); na família (que, antes hierarquizada, passa a ser igualitária no seu plano interno, e, ademais, deixa de ter o perfil artificial constante no texto codificado, que via como sua fonte única o casamento, tornando-se plural quanto à sua origem) e nas relações contratuais (onde foram previstas intervenções voltadas para o interesse de categorias específicas, como o consumidor, e inseriu-se a preocupação com a justiça distributiva).

Esta publicização do direito regulador das relações privadas, e a concomitante privatização das normas aplicáveis à atividade do Estado, tomou menos nítida, na ótica da ordem jurídica, a distinção entre direito público e direito privado, sendo fenômeno reconhecido, como regra, nos sistemas jurídicos romanistas atuais.

Envolve um fenômeno que objetiva, por um lado, a renovação da estrutura da sociedade, e, por outro, a adaptação a uma nova realidade econômico-social, em que os padrões tradicionais foram drasticamente alterados, com a internacionalização das relações econômicas e sociais, obrigando a repensar os valores ideologicamente consagrados no ordenamento jurídico e as influências interdisciplinares sofridas pelo direito nesta fase de mutação.

A superação do sistema do direito privado clássico

Reconhecendo a correspondência entre o paradigma de sistema jurídico hoje prevalente e o modelo engendrado pelo liberalismo, dois séculos atrás, o qual, embora tenha sido atualizado em seu conteúdo, reflete a mesma concepção das relações entre os homens há duzentos anos, estando, neste sentido, superado pelas emergências sociais, o que se tem observado é uma tentativa de adaptação do modelo vigente, buscando atender a realidade atual, por um lado, e por outro, subsistir.

Neste passo, conseqüência peculiar do caráter anacrônico deste modelo é a valorização do operador jurídico, de sua atuação, na medida em que o obriga a seguir na direção para que apontam as transformações pelas quais passa a sociedade no momento histórico presente, afastando-o do apego aos dogmas e às categorias tradicionais do direito, à pena de declínio e exclusão profissional.

Abandono da neutralidade e leitura interdisciplinar

Enraizado no racionalismo-individualista, o sistema jurídico liberal induz à lógica, à generalidade e à abstração. A partir de sua orientação filosófica, exagera o papel da razão, em detrimento da experiência, utilizando como método de investigação científica os dados obtidos por dedução, excluindo os elementos empíricos obtidos por indução.

Isto determinou, por longo período, a prisão do jurista à busca do sentido do direito exclusivamente no texto legal, afastada a preocupação com realizar justiça, e ao positivismo, chegando a KELSEN e sua teoria pura, divorciada da realidade.

Em KELSEN, o direito é apreendido como um sistema de normas, um conjunto de relações lógicas desvinculadas da natureza e do homem que dela faz parte.

Trata-se da expressão mais acabada da neutralidade do direito.

Assumida a ficção deste modo de ver o direito, reconhecida sua necessária funcionalização e vinculação ao contexto histórico de uma determinada época, embora mantida a estrutura formal racionalista-liberal na organização do sistema, não ficou esta isenta de críticas, como ocorre com a denominada e antes referida descodificação, entendida como o ocaso dos códigos, com sua pretensão de monossistema, passando para o polissistema, com a gradativa conquista de espaços pelas leis especiais, centradas na constituição, de tal sorte que a visão do fenômeno jurídico sob este novo ângulo conduziu a uma leitura interdisciplinar do direito.

A propósito, referiu Pietro BARCELLONA que a aparente neutralidade das formas jurídicas de espécie codificada, a conseqüente capacidade expansiva "endógena" das normas jurídicas, a independência entre o juízo jurídico e os outros critérios (sociais, éticos, etc) de valoração das condutas humanas, não são a expressão formal da intrínseca neutralidade do direito. Pelo contrário, constituem a expressão, uma expressão historicamente determinada, de sua intrínseca historicidade, de seu perfil de fenômeno histórico.

Isto significa recepcionar o pluralismo jurídico, reconhecendo que o direito estatal concorre com ordens independentes dele, devendo ser trabalhado a partir da articulação, da intercomunicação e interpenetração entre estas diversas ordens.

Na expressão de Antônio Carlos WOLKMER, "Uma perspectiva interdisciplinar revela que a inter-relação fragmentada do legal não é mais vista como anárquica e que é perfeitamente admissível viver num mundo de juridicidade policêntrica".

Concluindo: "Neste contexto, o pluralismo enquanto perspectiva interdisciplinar consegue, no largo espectro da historicidade de uma comunidade regional ou global, intercalar o 'singular' com a 'pluralidade', a junção democrática da variedade com a equivalência, a tolerância expressa na convivência do particular com a multiplicidade".

A partir da leitura interdisciplinar do direito, portanto, a análise de cada caso concreto, na sua historicidade, é obrigatória em qualquer circunstância: há que se entender e interpretar a cultura do povo, seus valores e sua psicologia, para apontar a pertinência da solução apontada, diante da provável reação dos cidadãos às situações emergentes, envolvam elas crises e dificuldades, ou mesmo êxito.

Trata-se de um repensar o direito no contexto de uma ordem capaz de vincular lei e realidade.

Este modelo epistemológico significa, por via de conseqüência, que os resultados apontados jamais poderão ser únicos, devendo ser adequados, para a situação, momento e local específicos a que se dirigem, à pena de criar-se uma nova ficção, divorciada da realidade e sem condição de atender com sucesso aos reclamos daquela determinada tensão ou emergência social.

Passagem da autonomia privada ao interesse social

No Brasil, a transição da sociedade agrária, em que a família era uma célula não apenas patriarcal, mas também econômica, produtiva, para a realidade urbana, vinculada à industrialização e ao comércio, com a conseqüente mobilidade dos indivíduos, na busca do emprego e da melhoria de vida deu-se de forma traumática, sem nenhum preparo cultural.

Em razão de problemas externos, que, embora não exclusivamente, podem ser debitados às crises político-econômicas provocadas pelos detentores eventuais do poder, o quadro social brasileiro revela significativo êxodo rural, extremamente acentuado na segunda metade deste século, com todas as conseqüências interdisciplinares daí decorrentes.

Não bastasse ser a industrialização hoje considerada uma forma antiga de desenvolvimento, o modelo industrial brasileiro também é ultrapassado, como também o é nosso sistema educacional.

Neste contexto, a Constituição Federal brasileira de 1988 foi levada a refletir, em várias de suas normas, um perfil solidarista e intervencionista, atendendo, ao menos formalmente - tendo em vista que estas garantias, como regra, não se tornaram efetivas no cotidiano dos cidadãos e na operacionalização do direito -, a pressões sociais, na busca de mecanismos capazes de suprir as necessidades dos cidadãos, em especial dos excluídos.

Num mundo em que o poder do conhecimento cada vez mais se acentua, de tal sorte que o próprio poder econômico não pode mais ser satisfatoriamente exercido senão apoiado em um conjunto de informações, programas de computadores, conhecimentos sofisticados e especializados, à pena de perecimento ou inviabilização da atividade exercida, os valores imateriais cada vez mais superam o interesse privado de apropriação de bens, o que justifica a sobrevalorização do interesse social na preservação do equilíbrio dos contratos.

Neste novo contexto, ainda que mantida a estrutura jurídica liberal-burguesa na organização do sistema, não há nenhum sentido na proteção de um direito proprietário de conotação individualista, privilegiando, no que se refere aos bens sobre os quais incide, a apropriação imobiliária, como o fez o texto do Código Civil brasileiro de 1916, editado numa época em que a base das fortunas era a propriedade fundiária, eis que, no momento histórico atual, caminha-se na direção da despatrimonialização dos bens jurídicos, valorizando o conhecimento e a educação (entendido o aprendizado como um fenômeno muito mais amplo do que a educação formal, uma vez que a informação se transmite hoje com celeridade incapaz de ser acompanhada no cotidiano pelas escolas, de onde a contínua necessidade de complementar os dados obtidos numa educação escolar com elementos externos).

Esta despatrimonialização do direito civil não significa a exclusão do conteúdo patrimonial no direito, mas a funcionalização do próprio sistema econômico, diversificando sua valoração qualitativa, no sentido de direcioná-lo para produzir respeitando a dignidade da pessoa humana (e o meio ambiente) e distribuir as riquezas com maior justiça.

Por tudo isto, pode-se asseverar que os novos paradigmas, consagrados constitucionalmente, com relação à apropriação de bens e relações contratuais, funcionalizando o exercício destas atividades com um sentido social, antecedida pelo rol de direitos e garantidas do cidadão, princípios categóricos, instituídos no plano individual e coletivo, para trabalhar suas dimensões fundamentais, afetando o direito em geral e o direito privado em particular, correspondem, ao menos em parte, a um reflexo da concepção da vida da sociedade, com as inspirações interdisciplinares que sofre.

Assim, embora se mantenha, como princípio, um direito centrado no homem, construído segundo o imaginário racionalista-liberal, estabelece-se restrições e limites, voltados para a preservação dos interesses coletivos, bem como para o desenvolvimento e preservação da dignidade do cidadão, ausentes no sistema clássico do direito civil, consolidado no Código de 1916.

Neste sentido, a preocupação com o renascer da codificação, ainda que com uma roupagem modernizada, visualizada num novo texto, na medida em que seja vista como um retorno ao direito voltado para os interesses privados, centrados no indivíduo, em oposição aos interesses sociais, ordenado num sistema que se pretenda completo, situa-se na contramão da história, pela tendência à superação da dicotomia direito público-direito privado, através da constitucionalização dos institutos básicos do direito civil, a serem regulamentados por estatutos próprios, presumivelmente mais eficazes no trato destes temas, por sua especialização.

Marcos Katsumi Kay - N1

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