quarta-feira, 11 de junho de 2008

CÓDIGO CIVIL DE 1916 - A Influência do Code, do BGB e da tradição romanista

Ressalta Clóvis do Couto e Silva (1997) que a maioria dos Códigos latino-americanos sofreu profunda influência do Direito francês e que não se pode dizer que tenha sucedido o mesmo com o Direito brasileiro. A razão principal está no fato de terem vigorado no país as Ordenações Filipinas até a entrada em vigor do Código Civil brasileiro, em 1916 - portanto, por mais 300 anos. As noções de propriedade, família e contratos são, ainda, as da última fase do Direito Comum, pois o Código Civil germânico publicado em 1900 não foi considerado durante o período de tramitação do Código Civil, e poderia ter sido, pois ele somente foi publicado em 1916. As alterações verificadas entre 1899 e 1915 foram, em sua maioria, apenas formais, resultantes principalmente das críticas de Rui Barbosa.

Talvez a melhor metodologia para se denotar as diversas influências na codificação de 1916 consista na análise das principais concepções acolhidas pelos grandes juristas brasileiros que trabalharam em projetos dos quais resultou o Código Beviláqua.

Para se entender o sistema do Código Civil de 1916 é imprescindível que se exponha, preliminarmente, a influência do pensamento de Teixeira de Freitas. Embora não tenha atuado diretamente na elaboração do Código de 1916, suas influências sobre este são significativas, como já exposto em tópico anterior. Por outro lado, juristas que tiveram destacado papel na elaboração e crítica do projeto do Código Civil de 1916, tais como Tobias Barreto, Clóvis Beviláqua e Rui Barbosa, são expoentes da denominada Escola Alemã de Recife, que, fundada pelo primeiro, difundiu a ciência jurídica alemã no país, cujos juristas eram acostumados a uma orientação até então quase que exclusivamente francesa. Os sistemas de Savigny e dos pandectistas exerceram uma significativa influência no pensamento de Clóvis Beviláqua.

Acrescenta Almiro do Couto e Silva (2003) que os Códigos mais recentes, como é o caso do Código Civil brasileiro, foram tributários do gigantesco esforço de análise e sistematização empreendido pela pandectística alemã do século XIX, que, trabalhando de modo especial sobre o direito romano, acentuou consideravelmente o aspecto da racionalidade de suas normas. O cientificismo jurídico foi o método de que se serviu a pandectística, que se propunha a organizar e articular toda a matéria jurídica num sistema completo, limado e polido outra vez pela razão, e tão densamente fechado que impossibilitasse o juiz, ele próprio formado nessa ciência jurídica, de rebelar-se contra a sua lógica interna.

Para o autor, o direito romano consiste numa experiência, como direito na nação romana, de aproximadamente mil anos, e que após o ocaso do Império Romano do ocidente, ele sobrevive ainda, embora em forma vulgar, decadente, degradado e corrompido, como direito dos povos bárbaros que dominam a Europa e, igualmente, no direito bizantino. No século XII, com Irnério e a Escola de Bolonha, é ele redescoberto e reestudado, para ser depois, recebido como direito comum, de caráter subsidiário, na maior parte dos países europeus, formando, com a filosofia grega e a religião cristã, a base de cultura da assim chamada civilização ocidental. Houve, portanto, vários direitos romanos.

O direito romano chegou ao nosso Código Civil, sobretudo, pela obra da codificação justinianeia, filtrada pela experiência jurídica portuguesa, na qual, quase desde as suas origens, exerceu importantíssima função como direito subsidiário, ao lado do direito canônico. Levará, porém, algum tempo até que o direito português passe a beber diretamente nas fontes romanas. A estas tinha acesso, apenas, o reduzido número das pessoas que liam latim e que haviam tido a ocasião de estudar em universidades estrangeiras ou na recém criada universidade portuguesa. Os demais, quando aplicados aos misteres da justiça ou da administração do reino, estabeleciam contato com o direito romano ou com o direito canônico mediante textos que só indiretamente os espelhavam, como sucedia com as coletâneas jurídicas castelhanas.

Com o andar do tempo cresce o número dos interessados em conhecer o direito romano nos seus próprios mananciais. Com a promulgação das Ordenações Afonsinas, em 1446 ou 1447, declara da prevalência do direito português sobre o direito subsidiário. Esse estado de coisas perdura nas Ordenações Manuelinas, do início do século XVI e nas Ordenações Filipinas, do começo do século XVII (1603) que tornam a afirmar a preeminência das fontes imediatas do Direito, consistentes nas leis nacionais, estilos da corte e costumes do Reino sobre o direito subsidiário. Na hipótese de o direito romano e o direito canônico não terem solução para o caso concreto, dever-se-ia recorrer à Glosa Magna de Acúrsio ou à opinião de Bártolo.

Almiro (2003) permite a interpretação o Germanismo num sentido mais largo, abrangendo as criações do pensamento jurídico alemão, posteriores à recepção, que foram acolhidas na nossa codificação, por inteiro ou modificadas ou que a ela serviram de inspiração. Em tal perspectiva, a investigação dos traços deixados no Código Civil de 1916 terá necessariamente de considerar a contribuição romanista da ciência jurídica alemã, que começa com Savigny, e que depois se irá desenvolver notavelmente com a pandectística, na qual brilha singularmente a obra de Windscheid, culminando com o BGD (Bürgerliches Gesetzbuch), concluído em 1896, mas que entrou em vigência em 1900. Dizendo de outro modo, por germanismo, nesse sentido, não se considerará a matéria sobre a qual trabalhou a ciência jurídica alemã (matéria predominantemente romana), mas apenas e exclusivamente essa ciência jurídica.

Quem se debruçar sobre a obra de Teixeira de Freitas ou dos grandes juristas brasileiros da fase imediatamente anterior à da elaboração do nosso Código Civil, como o próprio Clóvis Beviláqua, logo perceberá a intimidade que tinham esses autores com a obra dos mais célebres juristas germânicos do seu tempo. Deve-se dizer, porém, a bem da verdade, que essa intimidade se estendia também aos juristas eminentes, de expressão francesa ou italiana, para não falar nos portugueses. De certa maneira, repetia-se, assim, num plano mais elevado, em que os exageros eram eliminados por critérios críticos bem mais estritos, o que acontecia nas práticas forenses, onde os advogados, no afã de convencerem os juizes, invocavam farta doutrina estrangeira, reiterando uma praxe que se consolidara desde a Lei da Boa Razão. É oportuno que se saliente, no entanto, que a literatura jurídica alemã do século XIX qualitativamente sobrelevava a todas as outras, contrabalançando, poderosamente, a influência que o Código Civil Francês exerceu sobre a legislação de outros povos.

Savigny, os pandectistas e seus sucessores deram origem a uma doutrina que combinou pela primeira vez os métodos históricos com os de uma dogmática sistemática e elaborou os conceitos jurídicos e os princípios gerais com um grau de clareza e de refinamento que anteriormente nunca tinha sido atingido. Foram os alemães, sem sombra de dúvida, os pais da ciência jurídica moderna, que encontra seu coroamento no BGB. Comparada essa monumental obra legislativa com as primeiras codificações do século XIX, de imediato se destaca a superior qualidade técnica do BGB. O desenvolvimento científico do Direito, ocorrido na Alemanha, no curso do século XIX, bem como as modificações culturais, econômicas e políticas por que passou o mundo nesse mesmo período de tempo, envelheceram e desgastaram, prematura e severamente, o Código Civil francês. Muito embora fosse ele a expressão mais alta do jusnaturalismo racionalista, elaborado, portanto, e posto em vigor com a pretensão de haver cristalizado uma ordem jurídica abstrata e atemporal, que deveria servir a todos os povos, motivo pelo qual intérpretes e aplicadores estavam proibidos de desnaturá-los, muito cedo se verificou que ele não representava o fim da história jurídica. E quem se incumbirá de mostrar isso será, precisamente, a Escola Histórica, em todos os seus desdobramentos, e o novo humanismo que a caracteriza, em poucas palavras, a ciência jurídica alemã do século XIX.

Ainda segundo Almiro (2003), ao efetuar o cotejo entre o BGB e aqueles outros códigos, observa-se que estes não haviam estabelecido regras sobre as pessoas jurídicas (o que foi objeto de meditação pela doutrina alemã); a fundação lhes é desconhecida, do mesmo modo como a noção de atos jurídicos e de suas diferentes categorias; seu tratamento da nulidade dos atos carece de precisão; eles não contêm normas sobre a conclusão dos contratos, a representação, a estipulação em favor de terceiros, a cessão de crédito e a assunção de dívida; a causa e o ato abstrato são representados desde então (desde o BGB) sob uma nova luz; do mesmo modo como o enriquecimento sem causa e a posse.

Não pode causar surpresa que muitas dessas imperfeições apontadas no Código Civil francês (e o mesmo se poderá dizer de outros códigos que receberam sua direta influência) estejam ausentes no Código Civil de 1916, como também certamente não espantará que nele tenham sido acolhidos progressos técnicos revelados ou introduzidos pela ciência jurídica alemã, não só em razão da sua excelência, mas também porque a chamada Escola do Recife, sob a liderança de Tobias Barreto, dera considerável importância e prestigio à cultura germânica no campo do Direito. Cabe lembrar, nessa ordem de considerações, que Clóvis Beviláqua era professor da Faculdade de Direito do Recife.

Almiro (2003) conclui que seria perfeitamente natural, como o foi, que, em razão da sua maior proximidade histórica, a ciência jurídica alemã, afinal cristalizada no BGB, tivesse sobre o Código Civil Brasileiro uma influência em muitos aspectos mais expressiva que a do Código de Napoleão. O Código Civil Alemão e o brasileiro, diferentemente, propunham-se a ser o coroamento e a conclusão de um prolongada fase de vigência do ius commune, muito mais do que instrumentos revolucionários de mudança da sociedade. Apesar de que a preocupação com a segurança jurídica dos indivíduos estivesse evidentemente entre as motivações principais de ambas as codificações, pois, é óbvio que a maior definição e clareza da ordem jurídica, operada pela codificação, teria essa conseqüência imediata, faltava-lhes a missão propedêutica de educar o povo em um novo credo.

Marcos Katsumi Kay - N1

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